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Agenda do Poder - Manuela Carvalho (12/10/2025)

Metanol: o risco invisível que assusta o Rio e muda o consumo de bebidas alcoólicas

Vendas de destilados e cervejas caíram na capital; Polícia Civil investiga circulação de bebidas adulteradas no estado

Cidade boêmia por excelência, o Rio de Janeiro é conhecido por reunir turistas e cariocas para conversar, dançar, aproveitar as praias e, claro, celebrar as noites nos bares e pontos badalados. Entre os rituais da vida social, há um elemento quase sempre presente: a bebida alcoólica. Mas as recentes notícias sobre destilados adulterados com metanol, que já provocaram casos de intoxicação e mortes em São Paulo, acenderam um alerta nacional.

No estado do Rio, a Secretaria de Saúde orientou os municípios a reforçar a vigilância sanitária. Até a última quarta-feira (08), cinco casos suspeitos de intoxicação eram investigados em Cabo Frio (2), São Pedro da Aldeia (1), Cantagalo (1) e Volta Redonda (1). Todos estão sendo monitorados pelo Centro de Informações Estratégicas de Vigilância em Saúde. A Polícia Civil, por meio da Delegacia do Consumidor (Decon), também acompanha os casos.

Embora ainda não haja registros na capital, o medo já altera a rotina de quem bebe e de quem vende. Em diferentes pontos da cidade, o pensamento entre moradores são parecidos.

“Eu costumo tomar whisky, vodka, mas parei. Sendo farmacêutico, sei o que o metanol causa no organismo das pessoas. Nem cerveja estou bebendo mais, fico só no refrigerante, no suco, e prestando atenção. A gente não sabe o que pode estar contaminado”, diz Alex dos Santos, 38 anos.

“Eu não bebo muito destilado, fico mais na cerveja. Mas estou com medo de beber a cerveja também, bebi semana passada com medo. Tem que ficar de olho”, concorda ainda a balconista Andiara Rocha, 29 anos.


O impacto nos bares do Rio

No primeiro fim de semana após o alerta, bares e quiosques da cidade sentiram este reflexo imediatamente. De acordo com o Sindicato de Bares e Restaurantes do Rio de Janeiro (SindRio), houve queda nas vendas de destilados, especialmente cachaça e vodca, enquanto o consumo de cerveja aumentou.

“Nos bares onde o foco é o drink, a queda chegou a 80% no consumo. O faturamento chegou a ficar abaixo de 75% por conta desta queda. Restaurantes onde vinho ou chopp e cerveja são mais consumidos, a queda é menor, em torno de 60%. Já naqueles locais com perfil executivo, não se nota queda significativa”, destaca o presidente do sindicato, Fernando Blower.

O setor tenta reagir reforçando a confiança do cliente e cobrando ações mais firmes das autoridades.

“Os associados têm colocado as notas fiscais à disposição dos clientes, solicitado aos seus fornecedores o laudo de potabilidade além de declarações públicas sobre a procedência de seus insumos. Mas, o mais importante, é que as autoridades intensifiquem as fiscalizações e investigações de vendedores e distribuidores informais e fabricantes clandestinos”, reforça Blower.

Apesar dos esforços para manter a confiança do público, os efeitos econômicos já se fazem sentir em toda a cadeia produtiva, indo muito além dos bares e restaurantes. A avaliação é do economista Gilberto Braga, professor do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (Ibmec).

“O efeito é negativo, ele afeta todos os participantes, que vai desde os produtores, importadores, até os consumidores finais, que ficam privados das suas bebidas. A crise já está instalada, as vendas estão praticamente paralisadas, o setor já está sofrendo. Mesmo quem tem as bebidas legais certificadas, vê suas vendas despencarem e, portanto, não apenas os bares e comerciantes, mas toda a cadeia produtiva é afetada de maneira negativa”, diz.

O economista lembra que o país já possui instrumentos oficiais de controle, como o selo de IPI emitido pela Casa da Moeda e fiscalizado pela Receita Federal, que ajuda a coibir a circulação irregular de bebidas.

“A partir desse selo, se tenta ter um combate à evasão fiscal e a circulação irregular de produtos de destilados. Então, de alguma forma, para o consumidor hoje o que existe disponível é a busca e a inspeção da invólucros das bebidas, das suas garrafas, de tal maneira que ele possa certificar ali de marcas, de identificação, de fabricação e o próprio selo de registro das autoridades brasileiras”, explica.

Para Braga, o setor privado precisa reagir e adotar ferramentas próprias de segurança que aumentem a confiança do público.

“Em paralelo, se sabe que é desejável que, de alguma forma, as empresas do segmento estabeleçam algum selo de certificação. Como se fosse um selo de que aquilo vai te dar uma garantia de que o produto é feito com todas as condições, que não é falsificado e, sim, certificado”, finaliza.


Um veneno sem cor

O metanol é uma substância química usada em combustíveis e solventes industriais, e extremamente tóxica ao corpo humano. Quando ingerido, é transformado em formaldeído e ácido fórmico pelo fígado, — compostos capazes de causar cegueira, danos neurológicos e levar à morte.

“Quando se ingere o metanol e o etanol, nosso fígado faz com que eles reajam de forma diferente: o etanol gera o ácido acético, que é o vinagre, e o metanol gera o ácido fórmico, que é muito tóxico. Eles têm o mesmo odor, a mesma cor, mas se transformam em substâncias completamente diferentes no nosso corpo”, explica Monica Marques, professora do Departamento de Química Orgânica da Universidade do Estado do Rio (Uerj).

O perigo é invisível. Segundo a professora, é impossível identificar o metanol a olho nu. “Não tem cheiro, a cor é igualzinha [transparente], por isso adulteram as bebidas com metanol. A substância não deixa nenhum resíduo, você não sabe que a bebida está adulterada”, pontua.


Como o corpo reage

Os sintomas iniciais costumam aparecer de 6h a 24h após a ingestão da bebida contaminada.

“O metanol não causa embriaguez, então você não sente nenhuma diferença na hora. Você pode até sentir a embriaguez porque está misturado com álcool, mas nada demais. Os sintomas começam com enjoo, uma indisposição… o quadro se agrava quando a vista fica turva, como uma neblina. Ou seja, a concentração está tão alta que chegou aos olhos”, enumera.

A cegueira acontece porque o ácido fórmico, produzido no fígado, circula pelo sangue e atinge o sistema nervoso.

“Quando o ácido está no sangue, ele passa por todo o nosso organismo, chegando aos olhos. O ácido fórmico, no nervo óptico, causa lesão e morte celular. Por isso, a pessoa fica cega. E isso começa de 6h a 24h depois de consumir a bebida com o metanol. Muita gente pergunta: ‘se deixar cair nos olhos, tem problema?’ Não, porque o metanol não é o problema, o problema é o produto que o fígado gera para liberar o metanol”, afirma Monica.

A professora reforça que não existe tratamento doméstico eficaz contra intoxicação por metanol. O importante é buscar auxílio médico o mais rápido possível.

“Não existe antídoto caseiro! Você precisa ir para o hospital e receber um medicamento injetável. Existe um antídoto, normalmente aplicam etanol, puro, para bloquear a produção do ácido fórmico no fígado. O etanol se transforma em ácido acético e bloqueia o ácido fórmico. Mas não adianta fazer em casa, beber mais álcool”.


O perigo na produção e na adulteração

Em São Paulo, a Polícia Civil investiga duas principais hipóteses sobre as bebidas adulteradas: a primeira é que a substância teria sido utilizada para higienizar garrafas reaproveitadas que, por algum motivo, não foram encaminhadas para a reciclagem.

A segunda linha de investigação aponta para o possível uso do metanol na tentativa de aumentar o volume de bebidas falsificadas. Nesse cenário, acredita-se que o responsável pela adulteração pretendia acrescentar etanol puro, mas acabou utilizando um produto contaminado com metanol.

O professor Wagner Fellipe Pacheco, do Departamento de Química Analítica da Universidade Federal Fluminense (UFF), explica que quando o etanol é produzido a partir dos seus precursores naturais, também ‘solta’ uma pequena quantidade de metanol no processo chamado destilação.

“Um processo feito com qualidade elimina essa fração dos voláteis que possuem metanol. Se for um processo de baixa qualidade, como em uma usina de processamento paralela, sem nenhum tipo de controle, o resultado pode produzir uma quantidade de metanol junto. Essa substância entrará no etanol”, informa o professor.

O pesquisador reforça que a população não tem como identificar o problema sozinha. “Embora existam alguns kits comerciais para a detecção de metanol, algumas reações colorimétricas, eles não são comercializados para a população em geral. Então, o que a pessoa tem que prestar atenção é na procedência do local onde se consome a bebida alcoólica”.

Monica e Fellipe destacam ainda que a análise laboratorial é o único meio confiável de detectar metanol em bebidas.

“Em laboratório, detectamos o que chamamos de ‘padrão ouro’. O padrão mais referência é por cromatografia líquida, que separa o metanol do etanol” -Monica Marques, química.


A rota da falsificação

A Delegacia do Consumidor (Decon) acompanha os casos sob investigação no Rio. Segundo o delegado Wellington Vieira, as bebidas adulteradas costumam ser fabricadas em galpões clandestinos, com uso de rótulos falsificados e líquidos de procedência duvidosa.

Ele detalha ao Agenda do Poder como a quadrilha age: “Existe um local, sem qualquer condições de higiene, ferindo diversas regras sanitárias, que é utilizado para o esvaziamento de um líquido que eles chamam de bebida e, depois, a garrafa é maquiada para dar um ar de legalidade. Eles falsificam a tampa, rótulo e o selo da garrafa, que é o que prova a originalidade da bebida”.

O esquema conta ainda com ajuda de gráficas, que produzem logos semelhantes a marcas conhecidas no mercado para, assim, enganar o consumidor.

“Existem quadrilhas especializadas nesse tipo de falsificação, com a participação de gráficas. É possível [distinguir a falsificação], mas a pessoa tem que ser um profundo conhecedor dos detalhes da garrafa para poder identificar. E o grande número de consumidores não têm esse conhecimento”, pontua.

O delegado ressalta que a adulteração de bebidas é crime contra a saúde pública, com pena que pode chegar a oito anos de prisão.


Como se proteger

Autoridades e especialistas, em comum acordo, orientam que as pessoas evitem o consumo de bebidas alcoólicas nesse período.

“O cuidado maior seria conhecer a procedência daquela bebida, se aquele estabelecimento é um local que você está sempre indo. O ideal realmente é evitar [consumir bebidas]”, reforça Monica.

O delegado alerta a população sobre como reconhecer produtos suspeitos: “A garrafa original tem um selo do Ministério da Agricultura. Então, a garrafa que não tiver esse selo, ou que esteja com o selo mal colado — muitas vezes falsificadores usam fita dupla face para colá-lo — certamente está adulterada.

“Eu acho que o grande perigo é que o metanol e etanol têm a mesma cor e sabor. Então, olhando apenas para a cor, não dá para diferenciar um do outro. É preciso procurar outros aspectos que sugerissem a adulteração: um rótulo mal feito, presença de materiais articulados na bebida, uma coloração diferente da usual”, enumera Wagner.


Medidas

A Secretaria de Estado de Saúde lançou uma ferramenta digital que apoia profissionais de saúde na avaliação dos casos de intoxicação por metanol. Nas Unidades de Pronto Atendimento da rede estadual, o link já está disponível para acelerar e aumentar a precisão do diagnóstico.

A ferramenta foi desenvolvida pelo Centro de Informações Estratégicas em Vigilância em Saúde (CIEVS) do Rio de Janeiro. A plataforma calcula indicadores de gravidade automaticamente e orienta sobre o uso de antídotos e indicação de outros tratamentos, como hemodiálise, por exemplo. Além disso, orienta a conduta inicial dos profissionais, e as monitorizações necessárias para esses pacientes.

Outra funcionalidade é a recomendação correta sobre os índices de hidratação, a realização de eletrocardiograma, a avaliação neurológica e oftalmológica e de outros parâmetros. Um dos indicadores afere a composição bioquímica do sangue, e pode indicar uma intoxicação antes da confirmação laboratorial.

O Ministério da Saúde adquiriu mais de 2 mil doses de fomepizol, medicamento usado como antídoto em casos de intoxicação por metanol. O produto não era fabricado nem comercializado no Brasil e foi importado da farmacêutica japonesa Daiichi Sankyo.

O fomepizol atua bloqueando a enzima álcool desidrogenase, responsável por converter o metanol em substâncias altamente tóxicas, como o formaldeído e o ácido fórmico, que podem causar cegueira e falência de órgãos.