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Gaúcha ZH - (16/02/2018)

Choque de ordem ou jogo político? O que pesou para a intervenção federal

Enquanto especialistas em segurança apontam para a necessidade de uma resposta à violência urbana, há quem vincule o decreto à iminente derrota da reforma da Previdência no Congresso

Com o anúncio da intervenção federal na segurança do Rio de Janeiro, as primeiras análises na esfera política jogam luz sobre o pano de fundo da discussão: o presidente Michel Temer, ao tomar a medida drástica, tenta ajudar a sociedade fluminense a retomar o controle sobre a criminalidade ou busca salvar o seu próprio governo da iminente derrota na votação da reforma da Previdência?

A situação fugiu de controle, mas o cenário atual não é novidade. A Rocinha é alvo de disputa do tráfico há cinco meses. Tiroteios, balas perdidas e mortes são rotineiros e os esforços para impor um pouco de paz na região se mostraram infrutíferos. A violência está no cotidiano da cidade, mas foram os dias de Carnaval que determinaram a reação radical de Temer, quando a violência, as agressões a turistas e a policiais, os arrastões e as cenas de desobediência civil marcaram a mais tradicional festa brasileira. Quando a situação chegou a tal ponto de descontrole no asfalto, mesmo com a existência de um suposto plano de segurança para o Carnaval, o presidente chamou o governador Luiz Fernando Pezão (PMDB) e o convenceu de que era momento de agir. Afinal, a população não aguenta mais.

Sob esse ponto de vista, a convicção é de que alguma coisa precisa ser feita. O Planalto é pressionado pelo fato de o governo federal deixar a segurança na mão dos Estados, assistindo do camarote fantasioso de Brasília o definhar do resto do país. A intervenção federal, cogita-se, será o carro-chefe de uma ofensiva do governo Temer que poderá incluir a criação do Ministério da Segurança. Uma inversão da pauta prioritária do Planalto: a Previdência sai de cena.

O chamamento do Exército encontra respaldo, mesmo que não seja uma solução definitiva, entre aqueles que acreditam que o governo do Rio, comandado pelo PMDB nos cinco últimos mandatos de maneira consecutiva, não tem mais nada a oferecer à sociedade. A corrupção e a crise do setor de óleo e gás, com o rebaixamento do preço do barril do petróleo, levaram o Estado à ruína. Líderes peemedebistas fluminenses estão no cárcere, como o ex-governador Sérgio Cabral e o ex-presidente da Assembleia do Rio Jorge Picciani.

"A situação das Forças Armadas é diferente da do governo do Rio, composto por um partido que arruinou o Estado e cujos líderes estão na cadeia. É dela que pode vir um nível de organização maior, aproveitando o que ainda há de combativo na polícia local. É um abacaxi para quem se preparou para guerras entre países? Talvez. Mas é de onde pode surgir a capacidade de reação. Não se trata nem de achar a solução para o problema, mas trazê-lo apenas a um nível suportável, para que outras dimensões, como a política social, o crescimento econômico e a própria educação entrem com sua parte", avaliou o jornalista e ex-deputado Fernando Gabeira, em artigo publicado no jornal O Globo e em seu site pessoal.

Opinião semelhante tem o promotor Cláudio Calo, do Ministério Público do Rio, experiente no ramo pela atuação no Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco).

— O governo fluminense demonstrou não ter condições de minimizar os problemas, daí a intervenção vem a ser a medida jurídico-constitucional cabível e disponível. A simbologia é de que a União assumiu categoricamente sua parcela de responsabilidade — diz Calo.

Ele é cético, no entanto, quando aborda as chances de sucesso da intervenção.

— Urge que sejam feitas alterações sérias no Código Penal, na lei de execução penal, mudando regras de regime de cumprimento de pena,  término de vísitas íntimas, maior rigor no contato do preso com terceiros, alterações no Código de Processo Penal, no Estatuto da Crianca do Adolescente (ECA). O Parlamento tem que fazer sua parte e também assumir suas responsabilidades, que não são pequenas — avaliou Calo.


Resposta ao fracasso da Previdência

Se, por um lado, a intervenção pode ser observada como uma tentativa de trazer a crise para parâmetros menos gritantes de desordem, há também um campo de análise que a identifica como uma tábua de escoro político ao governo Temer. Impingido ao poder com a expectativa de que faria reformas econômicas no país, o presidente sofreu desde a posse com sucessivos escândalos de corrupção, observando alguns dos seus mais próximos colaboradores serem presos, desde Rodrigo Rocha Loures, o homem da mala dos R$ 500 mil, e Geddel Vieira Lima, apontado como dono das caixas de dinheiro com R$ 51 milhões encontradas em um apartamento vazio em Salvador. O próprio Temer foi alvo de duas denúncias pelos crimes de corrupção passiva, organização criminosa e obstrução da Justiça, mas ambas foram derrubadas pela Câmara.

Com tantas crises, correndo risco de queda do poder, Temer apostou na sua habilidade de negociar com o Congresso para se assegurar na cadeira a partir da aprovação de projetos como a reforma trabalhista. Para 2018, a prioridade máxima era a reforma da Previdência, prevista para ser votada em fevereiro. É a agenda que mantinha algum rumo ao Planalto.

— O decreto me parece muito em defesa dele próprio (governo). Ele está encurralado por ter se comprometido com a reforma da Previdência, que não tem apoio, será derrotada. Para não retirar da pauta e não precisar admitir a derrota, Temer pode avaliar uma solução desse tipo, extrema. A Constituição não pode ser emendada em caso de intervenção federal em curso. Então, enquanto ela durar, a reforma da Previdência não poderá ser votada. Querem criar um espetáculo político de esperança — diz o deputado federal Miro Teixeira (Rede-RJ).


O tripé da crise

O caos do Rio combina três crises em uma só: a da política, a da segurança e a da economia. A última levou o Estado à bancarrota a partir do segundo semestre de 2014. O pagamento de salários de parte do funcionalismo chegou a acumular duas folhas de atraso em 2017. Em meio ao Carnaval, o comandante-geral da PM, coronel Wolney Dias, anunciou o remanejamento de parte do efetivo de 17 mil agentes mobilizados para a festa. Uma das soluções foi deslocar para a Zona Sul equipes do Batalhão de Choque que reforçavam o policiamento na Rocinha. Sem dinheiro, prevalece a antiga argumentação do "cobertor curto". Mas, dentre as três crises, a econômica é a que começa a dar tímidos sinais de recuperação. 

Em 5 de setembro de 2017, o governador Pezão assinou a adesão do Rio ao regime de recuperação fiscal. O polêmico programa, que contou com aumento de contribuição previdenciária de servidores, venda de patrimônio público e diminuição de despesas, prevê crescimento de receitas e queda de custos. Com validade de 36 meses, ele pretende gerar R$ 33,6 bilhões em recursos até 2020. Neste mesmo período, o Estado deixará de quitar R$ 29,4 bilhões com a postergação do pagamento de juros e amortização da dívida com a União.

O déficit orçamentário foi menor em 2017 em comparação com 2016 — R$ 5,4 bilhões contra R$ 10,1 bilhões — e a arrecadação de ICMS fechou o ano passado com alta de 3%. A folha de pagamento mensal não está atrasada, embora esteja em aberto uma parcela do 13º salário. O PIB nacional deve ter elevação em 2018. Sinais que indicam sutil melhora do quadro, mas ainda insuficiente.

— As melhoras sensíveis permitem que o Estado consiga fechar 2018 com a folha de pagamento em dia e pagando minimamente os fornecedores. Isso é insuficiente para melhorar a prestação de serviços e fazer investimentos novos, mas só o fato de pagar a folha em dia já movimenta bastante a economia do Rio, que tem muitos funcionários públicos e aposentados, o que ainda é consequência dos anos em que foi o Distrito Federal. A expansão econômica minimiza as mazelas sociais. Com geração de empregos, crescem as oportunidades de vida e mais serviços chegam às comunidades carentes — avalia Gilberto Braga, professor de Finanças do Ibmec/Rio.

O especialista é comedido nas análises positivas do cenário de recuperação ao classificar a situação econômica do Rio como "tempestade perfeita".

— Boa parte da indústria do Rio depende direta ou indiretamente do setor do petróleo. O corte dos investimentos da Petrobras atrapalha muito. Soma-se a isso a nova fórmula de divisão dos royalties e a crise internacional do petróleo — destaca Braga.

São fatores que diminuem a circulação de dinheiro e desaquecem os negócios, ocasionando cortes de gastos públicos. As variáveis impactam diretamente no cidadão que precisa de serviços de saúde, educação, segurança e assistência social. Uma das consequências é a marginalização. A solução definitiva não é de fácil alcance.

— O Rio precisa buscar novas vocações. O déficit industrial é muito grande e a produção agrícola é deficiente. O Rio importa mais de 70% dos gêneros alimentícios que consome, principalmente grãos, derivados do leite e carne — avalia Braga.


Ecos do Carnaval

O Carnaval também se encarregou de incendiar a relação da população da capital fluminense com o prefeito Marcelo Crivella. Em uma série de atritos, ele, evangélico, recomendou que os foliões não bebessem nos dias da festa e, depois, partiu em viagem à Europa, se ausentando da Marquês de Sapucaí. Os gestos foram interpretados como um desdém pela tradição local, motivado por crenças pessoais do prefeito. 

As festas de 2018 foram incansáveis em escancarar crises e defeitos. Até as escolas de samba padeceram. Campeã da elite do Carnaval do Rio, a Beija-Flor cantou na avenida uma crítica ácida à corrupção que grassa no Brasil. Na comemoração, um dos diretores da escola bradou em rede nacional: "Anísio, esse título é teu". O homenageado é Anísio Abraão David, patrono e presidente de honra da agremiação, contraventor condenado em 2012 a 48 anos de prisão por corrupção e formação de quadrilha. 

O Carnaval mostrou que o país sofre de crises na política, na economia e na segurança. Além da hipocrisia.